Vivemos em um tempo no qual até a espiritualidade corre o risco de ser instrumentalizada. O Evangelho de João (6,22-29) traz à tona uma reflexão profunda e desconfortável: por que buscamos a Deus? É uma questão essencial para qualquer cristão que deseje uma vida de fé madura. Jesus, com sua clareza divina, desmascara a multidão: “Estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos”. Em outras palavras, seguiam-no não por quem Ele é, mas pelo que Ele oferecia.
Essa passagem nos convida a um exame de consciência. Quantas vezes buscamos a Deus apenas quando precisamos de algo? Quando a saúde falta, quando os conflitos aumentam, quando o medo aperta… É natural que recorramos a Ele nesses momentos, mas não podemos limitar nosso relacionamento com Deus ao campo do utilitarismo. Precisamos crescer na fé e buscar o próprio Deus, não apenas os dons que Ele pode nos conceder.
Uma fé baseada na graça, não na utilidade
Santo Agostinho dizia: “Ama e faze o que quiseres”. A base do amor autêntico é o próprio Deus, que é amor. Quando nosso coração se fixa apenas nas graças recebidas, esquecemos do Doador. Ao agir assim, não apenas reduzimos Deus a um “resolvedor de problemas”, mas também empobrecemos nossa própria alma.
Estêvão, na primeira leitura (Atos 6,8-15), é um exemplo luminoso de uma fé madura. Cheio do Espírito Santo, ele enfrenta perseguição com serenidade. Seu rosto parecia o de um anjo — não porque estivesse ileso, mas porque sua vida estava profundamente unida à verdade de Deus. Ele não buscava vantagens. Buscava fidelidade. E por isso, entregou-se com liberdade.
Do estômago ao coração

Jesus nos convida a sair da fé baseada no “estômago” — ou seja, nas necessidades passageiras — para uma fé que brota do coração, sede do amor, da entrega e da confiança. A verdadeira fé não é movida apenas por sentimentos ou recompensas, mas por um desejo autêntico de viver em comunhão com Deus.
Santa Teresa de Ávila escreveu: “Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa, Deus não muda”. O alimento que não perece é justamente esse: a presença viva de Deus em nós. Mas esse alimento exige disposição: “Esforçai-vos pelo alimento que permanece até a vida eterna”.
O relacionamento com Deus e o risco do comodismo espiritual
Nos tempos atuais, com tantas distrações e promessas de soluções rápidas, é fácil cair num comodismo espiritual. Rezamos apenas quando nos convém, frequentamos os sacramentos esporadicamente e reduzimos a oração a pedidos — como se estivéssemos diante de um balcão de graças.
Mas o relacionamento com Deus é mais do que um ato funcional. Ele é chamado, resposta e presença. São João da Cruz ensinava que, muitas vezes, Deus permite secura espiritual para purificar nosso amor e torná-lo mais verdadeiro: “Para chegares a saborear tudo, não queiras ter gosto em coisa alguma”.
A maturidade da fé

Buscar o alimento que permanece é buscar intimidade com Deus. Isso se faz no silêncio da oração, na meditação da Palavra, nos sacramentos, na caridade vivida e na aceitação da cruz. Esse caminho nos faz crescer e ser mais livres.
A maturidade da fé se revela na constância. Como afirma o salmista: “Escolhi seguir a trilha da verdade, diante de mim eu coloquei vossos preceitos”. É uma escolha diária. Um compromisso de caminhar mesmo quando não vemos, de amar mesmo quando não sentimos.
Aplicações práticas para nossa vida
- Examine sua motivação: Você busca a Deus por amor ou apenas por necessidade? Esse exame deve ser frequente.
- Cultive a constância: Não reze apenas quando quiser ou sentir. Reze sempre. A constância educa o coração.
- Participe da Eucaristia: Ela é o alimento que não perece, a força da nossa caminhada. O próprio Cristo nos alimenta.
- Medite a Palavra de Deus: Ela é luz para o caminho. Comece lendo o Evangelho do dia.
- Busque a direção espiritual: Os santos sempre tiveram conselheiros. Não caminhe sozinho.
Palavras dos santos para iluminar o caminho
- “Procuremos Deus por Ele mesmo, e não pelos seus benefícios.” — São João da Cruz
- “Deus não se cansa de perdoar. Nós é que nos cansamos de pedir perdão.” — Papa Francisco
- “Não se perturbe. Tudo passa. Deus permanece.” — Santa Teresa de Ávila
Conclusão: o chamado à autenticidade
Jesus nos chama hoje, como chamou aquela multidão, a uma fé mais profunda. Uma fé que O busque por quem Ele é: o Filho de Deus, o Salvador, o Amado. Que nossas orações sejam mais do que pedidos. Que sejam encontros. Que nossas ações sejam mais do que rituais. Que sejam frutos de um amor verdadeiro.
Não é fácil trilhar esse caminho. Mas é o único que nos leva à vida eterna.
Rezemos:
Senhor, dai-me um coração que vos ame por quem sois, e não apenas pelo que podeis me dar.
Ensina-me a buscar-Vos na oração, na Eucaristia e nos irmãos.
Livrai-me do egoísmo e do comodismo espiritual.
Fazei-me fiel na busca do alimento que não perece.
Amém.